Folhetim por Licínia Quitério | Dona Clotilde (1º. Episódio)

Licínia Quitério

Folhetim por Licínia Quitério 

“Dona Clotilde” (1º. Episódio)

Dona Clotilde era madurona. O cabelo pintado de negro, avolumado por muita laca, com transparências indiscretas. Peladas, não senhor, coisas dos nervos que apanhara. Os lábios, pintados de escarlate, ganhavam a forma de coração em caixa de bombons. Passada que fora a beleza consentida pela frescura dos anos, ficara-lhe o ar de boneca de papelão abandonada em sótão, um pouco amachucada, mas ainda colorida e risonha. Mamalhuda, de perninha fina, sempre encavalitada em saltos altos, inclinava-se para a frente ao andar, lembrando um patito fora do charco. A propósito de alguma referência brejeira à abundância e proeminência mamárias, confidenciava, com indisfarçável orgulho, que, ao contrário de muitas mulheres da sua idade, tinha de usar coletes especiais, feitos por si, de forma a contrariarem a indiscreta tendência de subida dos peitos. Ao dizer “peitos”, corava ligeiramente. Vinham-lhe à memória elogios marotos do Tavinho.

Dona Clotilde acalentava um sonho que a fazia amealhar os parcos tostões sobrantes do trabalho no escritório. Havia de ter o seu próprio negócio, coisinha pouca, para principiar. Uma espécie de capelista, nome que já quase só ela usava. Explicava que se tratava de uma loja pequenina, de vão-de-escada talvez, a vender umas revistas, uns macitos de tabaco, uns brinquedos de plástico, uns chupa-chupas e o mais que o espaço e a inspiração permitissem.

Fazia o seu dia a dia no escritório com boa disposição, risadinhas de boca semi-fechada, para não desfazer as comissuras do coração. Cabia-lhe, como principal função, abrir e fechar o correio. Muito metódica, obcecada por arrumações e simetrias, manejava com segurança e destreza facas abridoras de envelopes, agrafadores, desagrafadores, novelos de cordel encerado, tesouras, balanças sensíveis ao grama (dizia com ênfase “o” grama), tubos de cola de várias marcas e até, quando o progresso se fez notar, uma máquina de franquiar.

(continua)

 


Pode ler (aqui) as outras crónicas de Licínia Quitério.


 

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